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e-Lucidário do Corpo e da Alma

PALAVRAS, TERMOS E FRASES QUE EM PORTUGAL ANTERIORMENTE SE USARAM NA IDADE MÉDIA

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A

ALMA

(al·ma)

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Elemento imaterial do ser humano, invisível, cujo poder se manifesta por via das acções.  Na Idade Média, corresponde a uma parte inseparável do corpo, residindo neste e complementando a fracção material do ser humano. Foi objecto da filosofia, teologia e de representações diversas ao longo da História, manifestando a sua presença na literatura medieval portuguesa, através de acepções alegóricas e simbólicas.

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Receptáculo e elo espiritual. São identificáveis em diversos momentos, na literatura historiográfica e hagiográfica, as expressões figurativas que evidenciam o vínculo deste elemento aos desígnios espirituais. Particularmente, a alma surge implicitamente como receptáculo da fé, de onde provém os intentos sagrados. Este exercicio poderá ser privado através do acto da excomunhão, atitude preconizada pelo Bispo de Coimbra face a Afonso Henriques por motivos de desobediência, como sugere a IV Crónica Breve (IVCB). A mesma fonte demonstra, ainda, que esta acção teria sido já alvo de ameaça por parte do Papa Apostólico de Roma, dada a mesma causa. Esta acção religiosa é, noutro caso, concebida pelo cardeal ao referido individuo, aos portugueses e aos habitantes de Coimbra, causada por uma afronta aquando do cantar do galo. Assim consta na IVCB, “E escomungou toda a çidade” e “todo uosso Reino” (Herculano 1856, 143), bem como a referência à não ordenação do clérigo Coleima como bispo. Por sua vez, a Carta de Bruges (CB) refere a privação da ordenação de um conjunto de homens, em território espanhol, por motivos de ausência, “he auido por grande mingoa e mais pertençentes serem ordenados” (Dias 1982, 9).

A função da alma como elo espiritual é aludido, ainda, na IVCB, onde este elemento surge implicitamente como indicador de devoção à religião. Isto é exemplar na referência que a IVCB faz à afeição de Afonso II, ainda que momentaneamente, pela sua cristandade no começo do seu reinado, “E foy muy boo cristãao No compeço” (Herculano 1856, 146). Na hagiografia Vida de Santo Aleixo (VSA), a alma surge sob o desígnio de “espírito”, atentando para a santidade de Aleixo, como Homem de Deus, “7 spiritu de deus he Ä“ ele“ (Allen Jr. 1953, 48). A IVCB faz ainda referência à alma como elemento passivo de salvação e redenção, no caso de indivíduos pecadores, através de um acto de amor preconizado por Jesus Cristo, filho de Deus.

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Fonte de emoções. Em adição ao vínculo da alma com o mundo espiritual e sagrado, este elemento surge como recipiente emocional. Num contexto profano de afectividade, alude-se ao conforto, seguindo um sentimento materno, “… 7 cõforto da mjnha alma” (Allen Jr. 1953, 52), motivado pela morte de Aleixo, e à dor e desespero, pela perda do filho, “… adoor da mjnha alma” (Allen Jr. 1953, 52). Emoções estas experimentadas por Aglaes, mãe de Aleixo na VSA. Noutro caso, refere-se ao sentimento de tristeza, preconizado por Deus e motivado pela ausência de Eufemiano, “contristaste 7 anoiaste assy mjinha alma alma” (Allen Jr. 1953, 51), evidenciando o contacto com o sagrado.

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Símbolo de finitudeEm conjunto com os aspectos emocionais de índole profana, a alma simboliza um elemento fundamental à vida humana, cuja remoção significa a morte. Assim sucedeu na VSA com Aleixo, um homem de fé, onde “Eele deu aalma adeus” (Allen Jr. 1953, 50). Um acontecimento descrito como tendo originado um conjunto de emoções, tendo ocorrido numa data em particular, a sexta-feira de “Endoenças”, na casa de Eufemiano.

 

Bibliografia

Allen Jr., H. D. The life of Saint Alexis. Two old Portuguese versions of the life of Saint Alexis: Codices alcobacenses 36 and 266. Urbana: The University Illinois Press, 1953.
Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain. “Ame”. In Dictionnaire des Symboles. Paris: Éditions Robert Laffont, 1982.
Herculano, Alexandre. Portugaliae monumenta historica. Scriptores. Lisboa: Academia das Ciências, 1856.
Le Goff, Jacques; Truong Nicolas. Une histoire du corps au Moyen Âge. Paris: Liana Levi, 2003.
Ribeiro, J. P. (ed.). 1860. Carta de Bruges para D. Duarte, Rei de Portugal. Dissertações chronologicas e críticas sobre a história. Lisboa. Academia Real das Sciencias. vol. 1, 398-411
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Autor
Ana Patrícia Estácio (FLUL/CH-ULisboa) | Direção científica: Armando Norte (FLUL/CH-ULisboa)

 

Citação

Estácio, Ana Patrícia. “Alma". In A. Norte (ed.) e-Lucidário do Corpo e da Alma: Palavras, termos e frases que em Portugal anteriormente se usaram na Idade Média [consultado em dd-mm-aaaa] https://medievalbodysoul.wixsite.com/body-soul/c%C3%B3pia-e-lucid%C3%A1rio

C

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CORAÇÃO

(co·ra·ção)

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Órgão constituinte da corporeidade humana e símbolo com profundas implicações sociológicas e antropológicas no mundo ocidental. Encontrou-se ao longo de toda a Idade Média no centro do discurso literário e iconográfico do reino de Portugal. Foi nele objeto de múltiplas alusões literais e, sobretudo, de associações simbólicas e metafóricas sugestivas, tanto da originalidade da retórica portuguesa do corpo na época medieval, como da sua natureza por vezes nada distintiva daquela que, na mesma cronologia, ressaltava noutras geografias da Europa cristã.

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Locus das virtudes. São várias as referências em que, na literatura cronística e epistolográfica portuguesa, o coração é metaforicamente concebido como um recetáculo no interior do qual a justiça podia ser “guardada”. A capacidade contentora dessa virtude cardeal em particular, parece ter sido vista como um atributo especialmente desejável, embora nem sempre presente, nos corações daqueles que tinham por dever inerente à função o seu exercício, designadamente reis e juízes. Assim o sugerem as palavras atribuídas pelo autor da IV Crónica Breve (IVCB) ao moribundo conde D. Henrique, pelas quais recomendava ao filho e sucessor, Afonso Henriques, que “tivesse” sempre justiça no seu “coraçam” (Herculano 1856, 140). No mesmo sentido se interpreta o avisamento que, transcorrido cerca de um século, D. Pedro fazia ao irmão e herdeiro do trono régio, D. Duarte, na famosa Carta de Bruges (CB), para que a justiça que existia nos “uosos corações” dali não saísse (Dias 1982, 17). E o mesmo se pode ainda dizer do lamento que, na mesma fonte, o duque de Coimbra expressava por tal virtude não reinar “nos corações daqueles que tem carrego de julgarem a uosa terra” (17).

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Fonte da vida e das emoções. A sinalizar a função vivificante reconhecida ao órgão, bem como a crença na sua capacidade sensitiva, são também várias as metáforas identificáveis na literatura portuguesa. Numa delas, alude-se à sua ausência, ou súbito desaparecimento, para descrever uma experiência de morte interior, induzida por um paroxismo emocional envolvendo desgosto, tristeza, perplexidade e angústia. Emoções experimentadas, segundo o hagiógrafo da Vida de Santo Aleixo (VSA), pelo pai do Santo, Eufemiano, que, ao inteirar-se da sua incapacidade em reconhecer no mendigo, que vivera durante longo tempo debaixo das escadas da sua casa, o próprio filho, ora morto, “foy em sy como se nõ teuesse coraçõ” (Allen Jr. 1953, 51). Ainda na mesma fonte, o coração é concebido como um recipiente passível de acomodar no seu interior “conforto 7 cõnsolaçõ” (51).  Noutro caso, surge como sinónimo de estima ou afeto, como parece verificar-se no passo da IVCB em que o conde moribundo acautela Afonso Henriques de que, deixando de fazer justiça, os súbditos se afastariam de si e do seu “coraçom”, quer dizer, da estima régia (Herculano 1856, 140).

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Assento da vida espiritual. Ao lado das metáforas remetentes para o coração como locus central às noções de afetividade secular, surgem as que vinculam o órgão à fé e ao contacto com o divino, idealizando-o como espaço privilegiado para a prática de ações contemplativas e sagradas. Nomeadamente a profissão de louvores e agradecimentos a Deus, como os que Santo Aleixo “disse em seu coraçõ”, aquando do seu inusitado desembarque no porto de Roma (Allen Jr. 1953, 48).  

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Núcleo da identidade. Afigurando-se por sua vez o órgão como locus conceptual do “ser”, os termos que o qualificam exprimem a personalidade ou o caráter do seu possidente. Na CB, os bondosos são, afinal, aqueles que têm “bons corações” (Dias 1982, 13). Da mesma forma, a referência que na IVCB se faz ao coração de D. Henrique, aí figurativamente tido como recetáculo do seu caráter, de onde o conde aconselhava o filho a retirar “algum tanto que sejas esforcado” (Herculano 1856, 140), subscreve esse entendimento do centro supremo da anatomia enquanto habitáculo primordial da individualidade.

 

Bibliografia

Aguiriano, Begoña e Arrouye, eds. Le «cuer» au Moyen Âge: Réalité et Senefiance. Aix-en-Provence : Presses Universitaires de Provence, 1991.

Allen Jr., H. D. The life of Saint Alexis. Two old Portuguese versions of the life of Saint Alexis: Codices alcobacenses 36 and 266. Urbana: The University Illinois Press, 1953.

Barclay, Katie, e Reddan, Bronwyn, eds. The Feeling Heart in Medieval and Early Modern Europe: Meaning, Embodiment, and Making. Berlim/Boston: De Gruyter/MIP, 2019.

Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain. “Coração.” In Dicionário dos Símbolos. Traduzido por Cristina Rodriguez e Artur Guerra. Lisboa: Teorema, 2019.

Dias, J. J. Alves. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (livro da cartuxa). Lisboa: Estampa, 1982.

Herculano, Alexandre. Portugaliae monumenta historica. Scriptores. Lisboa: Academia das Ciências, 1856.

Le Goff, Jacques. “O corpo como metáfora.” In Uma História do Corpo na Idade Média, editado por Jacques Le Goff e Nicolas Truong, 153–72. Traduzido por Marcos Flamínio Peres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

Mattoso, José. “O Corpo.” In História da Vida Privada em Portugal. A Idade Média, editado por José Mattoso, 198–347. Lisboa: Temas e Debates, 2011.

Silvério, Carla S. “A retórica do coração no discurso cronístico da realeza de Borgonha.” In O Corpo e o Gesto na Civilização Medieval, editado por Ana Isabel Buesco, João Silva de Sousa e Maria Adelaide Miranda, 201–15. Lisboa: Edições Colibri/Núcleo de Estudos Medievais, 2006.

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Autor
Beatriz A. Caldeira (FLUL/CH-ULisboa) | Direção científica: Armando Norte (FLUL/CH-ULisboa)


Citação

Caldeira, Beatriz A. “Coração". In A. Norte (ed.) e-Lucidário do Corpo e da Alma: Palavras, Palavras, termos e frases que em Portugal anteriormente se usaram na Idade Média [consultado em dd-mm-aaaa] https://medievalbodysoul.wixsite.com/body-soul/c%C3%B3pia-e-lucid%C3%A1rio

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